Transtornos alimentares e vegetarianismo Existe relação de causa-consequência - Blog Nutrify

Transtornos alimentares e vegetarianismo: Causa-consequência?

Após a respiração e a ingestão de água, a alimentação é a mais básica das necessidades humanas. Porém, comer é multidimensional. Não se come apenas alimentos, calorias e vitaminas. Se mastiga, engole e digere história, cultura, hábito, comunidade, sentimento, humor, crença, conhecimento e vontade. Comer é um ato fisiológico, antropológico e cultural, além de ser emocional e simbólico. Dessa forma, a história da alimentação vai muito além da história dos alimentos, isso é, de sua produção, distribuição, preparo e consumo. Nesse sentido, é importante também quando, onde e com quem se come1,2,16.

Os seres humanos são classificados como onívoros, capazes de consumir vegetais e produtos de origem animal. A história evolutiva humana relata que era usado o método de caça-coleta para obtenção de alimentos. Há cerca de 10 mil anos, os humanos desenvolveram a agricultura, o que alterou consideravelmente o que comiam, além de permitir o crescimento da população, estabelecimento de cidades e aumento da densidade demográfica de forma progressiva8. Assim, diferentes fontes alimentares, disponíveis nas várias regiões pelas quais a população humana se expandiu, permitiram que cada pessoa adotasse um modelo de dieta16.

Segundo a Sociedade Vegetariana Brasileira (2021)18, o vegetarianismo é uma forma de alimentação em que há exclusão total ou parcial de alimentos de origem animal, sendo esse o critério de classificação dentre o amplo espectro de ramificações desse estilo de alimentação. Já o veganismo, conforme a Vegan Society (2021)20, é um estilo de vida que inclui, na medida do possível e praticável, a adoção de dieta plant based e vegetariana estrita – sem carnes, laticínios, ovos e mel –, não uso de produtos que contenham materiais advindos de animais, como couro e corantes, que tenham sido testados em animais ou a adesão a atividades que façam uso deles como forma de entretenimento.

Muitas são as razões para se adotar a prática vegetariana, em especial a ética animal, benefícios para a saúde e motivações ambientais e religiosas. O Conselho Regional de Nutricionista da 3ª Região (BRASIL, 2015)3 e a American Academy of Nutrition and Dietetics (2016)9 consideram a dieta vegetariana, em todas as suas subclassificações, como viável para se atingir equilíbrio e adequação, oferecendo benefícios à saúde, desde que seja planejada de forma adequada e suplementada, quando necessário. Nesse contexto, o profissional nutricionista tem um papel de grande valor ao planejar a alimentação dos indivíduos visando à promoção da saúde, uma vez que possui as ferramentas para adequar as decisões pessoais ao padrão dietético às necessidades individuais.

A insatisfação com o próprio corpo e a estética têm crescido nos últimos anos, em especial entre adolescentes e mulheres, inseridos em uma sociedade cujo padrão de beleza valoriza a magreza acima de tudo e a associa à saúde e ao sucesso, aspectos importantes na gênese dos transtornos alimentares7,13,16. A curiosidade por dietas alternativas e restritivas(que favorecem o efeito sanfona, por exemplo), acompanham esse crescimento, ao mesmo tempo em que crescem os adeptos à dieta vegetariana e o número de indivíduos diagnosticados com transtornos relacionados ao comportamento alimentar16.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5 da American Psychiatric Association (2015) categoriza os transtornos alimentares como perturbações persistentes na alimentação ou no comportamento alimentar, que resultam em consumo ou absorção alterada com comprometimentos da saúde física e psicossocial.

A obesidade não é classificada como transtorno mental, uma vez que possui etiologia multifatorial e costuma ser consequência do excesso de consumo calórico prolongado. No entanto, na prática clínica é possível observar fortes associações entre obesidade e transtornos mentais, dentre eles os relacionados à alimentação, com destaque para compulsão, anorexia e bulimia nervosa.

A etiologia da anorexia nervosa é caracterizada pela perda excessiva e intencional de peso, sendo comum que indivíduos neguem a existência e a gravidade da doença, o que dificulta o tratamento e permite a progressão com deletérias consequências físicas, psicológicas e sociais1. É acompanhada, em muitos indivíduos, por características obsessivo-compulsivas, geralmente relacionadas à comida, sendo essas exacerbadas por condições de subnutrição. O paciente com anorexia nervosa apresenta ideias inflexíveis em relação à nutrição e à alimentação, como não consumir determinados grupos de alimentos que considere inadequados ou que possam engordá-lo1,2, isso é, sua atitude alimentar é voltada à prática de dietas restritivas severas ou criação de aversões alimentares1,. Segundo Alvarenga, Scagliusi e Philippi (2011), uma das aversões mais comuns é à carne, em especial à carne vermelha, sendo então a dieta vegetariana frequente nesses indivíduos.

A privação do prazer encontrado na comida, dentro de um contexto social e de conforto aos quais ela está relacionada, pode evocar sensação de privação emocional. Por isso, indivíduos praticantes de dietas restritivas, que não perdem o peso esperado e/ou consideram não ter feito restrição extrema, podem sofrer com episódios de compulsão1

A bulimia nervosa é descrita como frequente ocorrência de episódios de compulsão alimentar, durante os quais se ingere quantidades de alimento acima do comum, dentro de um período determinado, e há associação à falta de controle do que e quanto se ingere. Esses indivíduos adotam comportamentos purgativos indevidos para evitar o ganho de peso como indução de vômitos, uso de laxantes, diuréticos, prática de jejum e exercício em excesso, além de possuírem preocupação excessiva com a forma corporal e peso.

É comum que haja vergonha com relação aos problemas alimentares, tentativa de ocultação e sentimento de incompreensão, com consequente isolamento social proposital ou não. Isso acontece porque a pessoa passa a viver em função de sua dieta, peso e forma corporal, preferindo se afastar por vergonha do próprio corpo e de suas atitudes alimentares ou por medo de julgamentos. Além disso, a cobrança e a discriminação são recorrentes na vida de indivíduos com transtornos alimentares, portanto, o sentimento de incompreensão é muito comum8

O mal compreendimento social, inclusive por parte de profissionais da saúde, é frequente, uma vez que não se costuma conhecer a fundo a complexidade de um transtorno alimentar. Nesse contexto de restrição alimentar, o vegetarianismo seria uma forma socialmente aceitável de se evitar grupos alimentares, não sendo a restrição associada ao transtorno alimentar por pessoas próximas5,17.  Esse estilo de alimentação seria uma alternativa para suprir o sentimento de incompreensão comumente relatado por esses indivíduos, já que a restrição poderia ser associada a qualquer dos motivos citados anteriormente como comuns à adesão ao vegetarianismo1,2. Outro ponto importante é o sentimento de pertencimento que estaria associado à adesão ao movimento vegetariano, já que ajudaria na inclusão social, uma vez que o indivíduo com transtorno alimentar se sentiria pertencente a um grupo e não isolado socialmente1.

O modelo de alimentação vegetariana costuma ser composto por frutas, legumes, verduras, grãos, leguminosas e sementes, o que estrutura dieta de baixa densidade calórica. Alimentos de origem animal possuem boa parte de sua composição na forma de gorduras, principalmente as saturadas, que aumentam o aporte energético, quando se considera o valor calórico por cada 100g de alimento4,15,19. Portanto, a dieta vegetariana é fator de proteção contra o excesso de peso17. No entanto, diferentemente da maioria dos adeptos ao vegetarianismo, a pessoa com anorexia nervosa, bulimia nervosa e/ou comportamento obsessivo-compulsivo em relação à sua alimentação, teria como motivação maior apenas a perda de peso, independentemente dos benefícios à saúde16.

Em seu estudo, BARDONE-CONE et al (2012)6 encontraram que metade das participantes do estudo, com histórico de transtornos alimentares, foram em algum momento adeptas de dieta vegetariana para perder ou manter peso, e que 68,1% delas percebiam relação entre a adoção do vegetarianismo e seu transtorno, relatando que a exclusão de grupos de alimentos a ajudavam a manter o controle alimentar e emagrecer.

Além disso, uma vez que o vegetarianismo e o veganismo requerem escolha cuidadosa e precisa dos alimentos a serem consumidos, de modo a evitar possíveis ingredientes de origem animal, haveria uma maior chance de desenvolvimento de ortorexia nervosa, condição cujo diagnóstico ainda não está descrito nos principais manuais de referência para transtornos alimentares6. A ortorexia nervosa é descrita como uma fixação pela saúde alimentar e física, caracterizada por uma obsessão-compulsiva por alimentos tidos como saudáveis e restrições alimentares severas11. Adicional a isso, a dieta vegetariana é tida como saudável e cardioprotetora, portanto, indivíduos com possível diagnóstico de ortorexia nervosa estariam mais suscetíveis a simpatizar com essa alimentação5. Esses indivíduos também podem sofrer com isolamento social e sentimento de incompreensão, sendo o vegetarianismo uma via para encontrar compreensão e pertencimento junto a quem segue o mesmo modelo de alimentação6.

Klopp, Heiss e Smith (2003)14 avaliaram em seu estudo, por meio de questionário voltado para rastreio de transtornos alimentares, se existia diferença na atitude alimentar de mulheres vegetarianas e não vegetarianas. Encontraram que a dieta vegetariana pode mascarar padrões de dietas restritivas com o objetivo de manter um baixo peso corporal ou perder peso, e sugeriram que as participantes vegetarianas do estudo possuíam risco aumentado para preocupação com o peso e transtornos alimentares.

Rustichelli e Almeida (2020)17 identificaram em seu estudo, que aplicou questionário similar ao usado por Klopp, Heiss e Smith (2003)14, preocupação significativa com ganho de peso, apesar de a maior parte das participantes estar eutrófica, além de terem indícios de compulsão alimentar.

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Considerações finais

Os dados apresentados demonstram que o modelo de alimentação vegetariana é comprovadamente associado à melhora da saúde, desde que bem planejado e adequado, como deve ser toda e qualquer alimentação. Porém, dada a aceitação social de exclusão de grupos, pode mascarar restrição alimentar com objetivo de perda de peso em indivíduos com histórico ou indício de estágios iniciais de transtornos alimentares. É crucial que os profissionais da saúde compreendam a complexidade associada à transição para padrão alimentar vegetariano, e estejam atentos às motivações para tal transição, não sendo o vegetarianismo por si só fator de risco suficiente para o desenvolvimento de distúrbio alimentar ou comprovada qualquer relação de consequência5,16.

Referências bibliográficas

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  2. ALVARENGA, M.S.; SCAGLIUSI, F.B.; PHILIPPI, S.T. Comportamento de risco para transtorno alimentar em universitárias brasileiras. Rev Psiq Clín., v.38, n.1, p.3-7, 2011.
  3. ACADEMY OF NUTRITION AND DIETETICS. Position of the Academy of Nutrition and Dietetics: Vegetarian Diets. J Acad Nutr Diet, v.116, n.12, p.1970-1980, 2016.
  4. BAIOCCHI, A.W.A.; CARDOSO, C.K.S. Efeito do padrão alimentar vegano e vegetariano em fatores cardiometabólicos: uma revisão de literatura científica. 2020. 19p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Nutrição) – Escola de Ciências Sociais e da Saúde, PUC Goiás, Goiás, 2020.
  5. BARDONE-CONE, A.M. et al. The inter-relationships between vegetarianism and eating disorders among females. J Acad Nutr Diet, v.112, n.8, p. 1247-1252, 2012.
  6. BARTRINA, J. A. Ortorexia o la obsesión por la dieta saludable. ALAN, Caracas., v.57, n.4, p.313-315, 2007.
  7. BERNARDES, T. Adolescência, mídia e transtornos alimentares: uma revisão bibliográfica. 2010. 34p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Enfermagem) – Universidade Federal do Pampa, Uruguaiana, 2010.
  8. BRAICK, P.R.; MOTA, M.B. História. Das cavernas ao terceiro milênio – volume único. 3.ed. São Paulo: Moderna, 2007. 752p.
  9. BRASIL. Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região. Parecer técnico CRN-3 nº11 de julho de 2015.
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  11. BRATMAN, S.M.D.  Orthorexia Essay, Disponível em <http://www.orthorexia.com/original-orthorexia-essay/>. Acesso em 04 ago 2021.
  12. CARNEIRO, H. Comida e Sociedade: uma história da alimentação. 7.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. 193p.
  13. FREITAS, N.B.; CARDOSO, C.K.S. Prática de dietas e risco para transtornos alimentares: revisando as evidências científicas. RBONE, v.14, n.88, p.735-744, 2020.
  14. KLOPP, S.A.; HEISS, C.J.; SMITH, H.S. Self-reported vegetarianism may be a marker for college women at risk of disorder eating. J Am Diet Assoc, v. 103, n.6, p.745-7, 2003.
  15. MILLER, M., et al. Triglycerides and cardiovascular disease: a scientific statement from the American Heart Association. Circulation, v.123 n.20, p.2292-2333, 2011.
  16. ROLA, C. Vegetarianismo e comportamento alimentar. 2015. 103p. Dissertação (Mestrado em Doenças Metabólicas e Comportamento Alimentar) – Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015.
  17. RUSTICHELLI, B.G.; ALMEIDA, A.R. Avaliação do risco de transtornos alimentares em praticantes de dieta vegetariana. Braz. J. Hea. Rev., v.3, n.4, p. 7439-56, 2020.
  18. SOCIEDADE VEGETARIANA BRASILEIRA. Vegetarianismo. Disponível em <https://www.svb.org.br/vegetarianismo1/o-que-e>. Acesso em 04 ago 2021.
  19. LUGLIO, A. Carta resposta da SVB ao artigo sobre vegetarianismo no blog Dietbox, 2018. Disponível em <https://www.svb.org.br/2493-carta-resposta-da-svb-ao-artigo-sobre-vegetarianismo-no-blog-dietbox>. Acesso em 04 ago 2021.
  20. VEGAN SOCIETY. Definition of veganism. Disponível em <https://www.vegansociety.com/go-vegan/definition-veganism>. Acesso em: 04 ago 2021.

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