A comunidade de microrganismos que vivem no interior ou na superfície externa do corpo humano forma a microbiota humana, e sua constituição genômica é chamada de microbioma humano. A microbiota humana, geralmente, envolve simbiontes que se beneficiam do hospedeiro¹ que desenvolve e mantém sua estabilidade e diversidade temporal durante a idade adulta até a morte². Assim, por sua vez, essa relação pode não afetar (comensalismo), pode afetar positivamente (mutualidade) e pode também afetar negativamente (patogênica) o funcionamento, a imunidade e a nutrição do hospedeiro¹.
A coleção de micróbios que colonizam o trato gastrointestinal é denominada microbiota intestinal e é composta por bactérias, arqueas, micróbios eucarióticos e vírus³. Embora a microbiota intestinal seja dinâmica, ela desempenha algumas funções básicas no sistema imunológico, metabólico, paisagens estruturais e neurológicas do corpo humano, exercendo também uma influência significativa na saúde física e mental de um indivíduo².
A microbiota intestinal possui a capacidade de realizar muitos processos que não podem ser realizados pelo hospedeiro. Esses processos podem dar origem a metabólitos, modulados ou produzidos microbianamente, que funcionam como substratos metabólicos e moléculas de sinalização no hospedeiro, com importantes implicações para o metabolismo e a saúde do hospedeiro4.
A microbiota intestinal desempenha papéis importantes na nutrição (degradando os componentes da dieta que, de outra forma, passariam pelo trato gastrointestinal não digeridos), no desenvolvimento e manutenção imunológica do hospedeiro e na proteção do hospedeiro contra micróbios patogênicos, incluindo C. albicans³. O equilíbrio entre microrganismos hospedeiros saudáveis deve ser respeitado para manter a barreira intestinal e as funções do sistema imunológico de forma ideal e, consequentemente, prevenir o desenvolvimento de doenças5.
Para evitar o super crescimento microbiano nas barreiras epiteliais e a invasão microbiana dos tecidos, o hospedeiro examina ativamente e protege suas superfícies de barreira por meio de dois ramos distintos, complementares e cooperantes, do sistema imunológico: imunidade inata e adaptativa. Em que, além de se comportar como a primeira linha de defesa do organismo, formando uma barreira física, as células epiteliais contribuem também para a resposta do hospedeiro por meio do reconhecimento ativo de micróbios e da avaliação de seu potencial patogênico³.
Os patógenos fúngicos possuem um grande impacto global na saúde humana. As estimativas sugerem que, a qualquer momento, mais de um quarto da população mundial terá uma infecção fúngica de pele, que 75% das mulheres sofrerão pelo menos um episódio de candidíase vulvovaginal durante a vida e que mais de um milhão de pessoas morrerão a cada ano de uma infecção fúngica invasiva³.
Existem fungos no trato gastrointestinal de todas as pessoas saudáveis, onde eles podem afetar o sistema imunológico e produzir metabólitos secundários que influenciam a saúde. Os fungos habitam a superfície da mucosa para manter a homeostase intestinal e a imunidade sistêmica6. Há evidências que sugerem que esses fungos intestinais desempenham um papel importante na imunidade e na inflamação do hospedeiro6. No entanto, fungos no trato gastrointestinal foram associados a inúmeras doenças e também podem contribuir para milhões de infecções fúngicas invasivas que ocorrem em indivíduos imunocomprometidos7.
Os primeiros fungos detectados no intestino infantil foram as leveduras, especialmente espécies de Candida, presume-se que sejam transmitidos pela mãe, pois as espécies de Candida são habitantes comuns da pele e da mucosa vaginal, bem como do cólon8. A colonização fúngica no início da vida tem um impacto nos resultados de saúde dos bebês ao treinar seu sistema imunológico 6, tal colonização inicial é amplamente dependente do modo de parto: os bebês nascidos por via vaginal obtêm fungos que colonizam a vagina, enquanto os bebês nascidos por cesariana adquirem espécies de fungos que estão relacionadas à pele6.
O microbioma individual obtido durante o nascimento muda ao longo da vida, indicando a especificidade deste microbioma. Especificamente na vagina, a forte relação cooperativa dos micróbios com o hospedeiro fornece a primeira linha de defesa contra a migração de patógenos oportunistas. Esse equilíbrio saudável é conhecido como eubiose. No entanto, a superação de patógenos oportunistas, perturba esse equilíbrio simbiótico, conhecido como disbiose, que pode provocar uma inflamação¹.
Candida é um fungo prevalente da microbiota humana9, mais especificamente um tipo de levedura, que habita o intestino e coloniza a região perineal e pode ter repercussões locais (como candidíase vaginal, resultado de um desequilíbrio na microbiota vaginal que favorece a proliferação do fungo responsável pela infecção) ou sistêmicas10. Essa espécie coloniza de forma assintomática muitas áreas do corpo, particularmente os tratos gastrointestinal e geniturinário de indivíduos saudáveis9. Essa levedura possui importante função no equilíbrio da microbiota saudável, colonizando de forma assintomática o trato gastrointestinal (GI), o trato reprodutivo, a cavidade oral e a pele da maioria dos humanos.
As espécies de Candida estão entre os principais exterminadores de fungos³. A maioria dos indivíduos carrega espécies de Candida como comensais em sua microbiota intestinal10. Mais de 15 espécies distintas de candida podem causar doenças, e os patógenos mais comuns são C. albicans, C. glabrata e C. tropicalis11. A espécie Candida albicans é responsável pela maioria dos episódios de candidíase e nos casos de reincidência é muito comum encontrarmos a presença da Candida glabrata.
A biologia, epidemiologia, patogenicidade e imunologia de C. albicans foram estudadas em maior profundidade do que para qualquer outro patógeno fúngico. Essa ênfase proporcionou um conhecimento basilar consistente e uma plataforma forte para estudos das relações entre o patógeno fúngico, a imunidade do hospedeiro e a microbiota local que estão no cerne da infecção fúngica³.
Em indivíduos com sistema imunológico saudável, C. albicans é frequentemente inofensiva, se mantida em equilíbrio com outros membros da microbiota local9. No entanto, em certas circunstâncias, C. albicans pode se tornar patogênica e causar doenças que variam de infecções superficiais comuns a infecções sistêmicas graves, sendo que em um hospedeiro saudável, o epitélio intestinal, juntamente com as células imunes da mucosa, constituem uma barreira estável que impede a translocação de C. albicans para a corrente sanguínea12. Quando há comprometimento do sistema imunológico local ou sistêmico, pode ocorrer crescimento excessivo de Candida, levando à infecção. Alterações na imunidade do hospedeiro, estresse, microbiota residente e outros fatores podem levar ao crescimento excessivo de C. albicans, causando uma ampla gama de infecções.
A anormalidade está justamente na proliferação desordenada que acarreta os sintomas da candidíase. A microbiota equilibrada e diversa, a secreção de peptídeos antimicrobianos (AMPs) e a atividade combinada dos sistemas, imune inato e adaptativo, agem para reduzir a carga durante os períodos de crescimento excessivo de fungos e restringem o fungo à morfologia comensal (levedura)12. No entanto, disfunções nesses mecanismos de proteção podem favorecer a translocação de C. albicans .
Estudos também relacionam o nível de estresse com a desestabilização da microbiota intestinal, favorecendo o aparecimento de tais fungos. O estresse pode afetar a microbiota intestinal, não apenas por meio do sistema imunológico, mas também leva a mudanças nos níveis de catecolaminas, que possuem um impacto significativo na microbiota intestinal. Além disso, o estresse afeta a recuperação de infecções, devido ao fato de que os microrganismos intestinais respondem a neurotransmissores e a outros mediadores relacionados ao estresse. É possível que o estresse mude o ambiente interno do trato gastrointestinal por meio de mecanismos imunológicos, neuroquímicos e físicos para torná-lo um espaço menos habitável para certos microrganismos, ainda que leve ao aumento de espécies mais patogênicas13. A alteração desse mecanismo em pessoas cronicamente estressadas prejudica a capacidade do organismo de montar uma forte resposta imunológica com um consequente aumento da morbidade. A exposição ao estresse agudo aumenta a secreção de mucina nos tratos digestivo e respiratório, o que deve aumentar a função de barreira mucosa, aumentando da taxa de infecção em indivíduos submetidos a estresse agudo14.
A capacidade de C. albicans de colonizar o intestino humano como uma comensal inofensiva, também é um aspecto vital de seu papel como patógena oportunista. Além de outras espécies de Candida, poucos patógenos exibem estratégias semelhantes de causar infecções em pacientes predispostos. A questão é que o C. albicans sempre tenta invadir o organismo de um hospedeiro saudável, mas a ausência de condições predisponentes não permite a invasão 10.
Considerações finais
A complexidade e o aspecto multifatorial das interações entre o fungo, o hospedeiro e a microbiota torna difícil compreender a mudança de comensal para patógeno. No entanto, um progresso significativo na compreensão dos dois estilos de vida diferentes de C. albicans, comensalismo e patogenicidade, foi feito por uma combinação de pesquisa experimental e clínica e observações, e metodologia aprimorada para estudar interações microbianas, metabólicas e imunológicas. Esperançosamente, esse maior conhecimento pode promover o desenvolvimento de estratégias destinadas a prevenir a candidíase de origem intestinal15.
Em suma, as interações entre C. albicans, o hospedeiro humano e a microbiota local exercem um grande impacto sobre a probabilidade de infecções mucosas e sistêmicas e a gravidade dessas infecções. Também é aparente que essas interações fungo-hospedeiro-microbiota são dinâmicas, interativas e enormemente complexas. Essa imensa complexidade é aumentada ainda mais pela variação genética e fenotípica dentro das espécies de C. albicans, e por numerosos fatores que contribuem para a variabilidade dos indivíduos e de suas microbiotas16.
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