Lactose: intolerância, alergia e rotulagem de alimentos | Blog Nutrify

Lactose: intolerância, alergia e rotulagem de alimentos

Você sabia que a lactose constitui aproximadamente 40% do aporte energético diário, relevante para mamíferos jovens plenamente amamentados? Além disso, ela auxilia na absorção de cálcio e no crescimento de uma microbiota intestinal gram positiva por meio de sua fermentação. Outra característica interessante é que o leite de vaca é constituído por 4,1 a 5% de lactose, ou seja, 46 g/L, menos concentrado do que o leite humano, que contém cerca de 70 g/L. Sendo assim, por que muitas pessoas têm dificuldade de digerir a lactose?

Essa habilidade para digerir a lactose está relacionada com o processo evolutivo, e pelo maior consumo de leite e derivados em determinadas áreas, dividindo as pessoas em dois fenótipos: a capacidade (traço dominante) ou incapacidade (traço recessivo) de digestão do dissacarídeo.

Em boa parte dos casos, a atividade da enzima lactase diminui na parede intestinal após o desmame, por causa da diminuição dos níveis de enzima LPH, o que permite classificar os indivíduos em dois grupos: lactose persistentes (LP) (normolactasia, digerem a lactose) e lactose não persistentes (LNP) caracterizando a hipolactasia primária, que provoca sintomas de intolerância à lactose.

Banner Institucional Nutrify | Blog

Mas o que é a hipolactasia?

Hipolactasia ou intolerância clínica à lactose refere-se ao diagnóstico realizado por um médico para a má digestão da lactose. O diagnóstico baseia-se na realização de uma biópsia intestinal (histopatologia normal) e quantificação da atividade da lactase.

As hipolactasias são classificadas em primárias ou secundárias. A hipolactasia primária pode ser congênita ou ocorrer na infância, sendo predominante de forma genética na maioria dos seres humanos. É caracterizada pela inabilidade de digestão efetiva da lactose, devido ao declínio da atividade da lactase, sendo esses indivíduos classificados como lactose-não-persistentes. Já a hipolactasia secundária é a perda da atividade da lactase por razões indiretas, em geral, patologias relacionadas ao intestino, como giardíase e doença celíaca. Sendo tratada a causa, a enzima lactase, geralmente, é recuperada nos enterócitos.

Nas pessoas com deficiência na produção de lactase, a lactose não é digerida e absorvida no intestino delgado; passa para o cólon, onde é fermentada por bactérias que produzem gases, ácidos graxos de cadeia curta e outros compostos, que podem causar distensão luminal e alterações de funções digestivas, causando a diarreia osmótica. Os sintomas de intolerância à lactose caracterizam-se por diarreia, flatulência, inchaço e cólicas após a ingestão de produtos lácteos.

Qual a diferença entre intolerância à lactose e alergia à proteína do leite?

De forma simples, intolerância à lactose refere-se ao desconforto gastrointestinal, com a má digestão de lactose ou a digestão incompleta do dissacarídeo, fazendo com que o indivíduo consuma uma quantidade do açúcar superior à capacidade da enzima em hidrolisar-lo de uma só vez.

Já a alergia à proteína do leite é uma reação adversa desenvolvida pelo organismo, dependente de mecanismos imunes, e não tem relação direta com a lactose. Essa alergia é mais comum em recém-nascidos e é desencadeada pela ingestão de frações de proteínas do leite em emulsão (caseína) ou no soro (albumina).

Os sinais e sintomas da alergia à proteína do leite são variáveis, desde diarreia, até enterocolite e distúrbios respiratórios. As proteínas do leite de vaca com maior potencial alergênico são a caseína, α-lactoalbumina, β-lactoglobulina, globulina e albumina sérica bovina.

O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, no dia 30 de março de 2016, o Projeto de Lei 8194/14, do Senado, que obriga os fabricantes a informar, nos rótulos dos alimentos, a presença de lactose e caseína. Isso é de extrema importância porque pessoas com alergia ao leite podem desenvolver complicações graves, como choque anafilático, ao consumirem pequenas quantidades desse alimento, enquanto indivíduos com intolerância à lactose suportam quantidades bem maiores de leite.

Lactose: intolerância, alergia e rotulagem de alimentos | Blog Nutrify

Como acontece a alergia à proteína do leite?

Há várias hipóteses, porém uma delas é a predisposição genética. Cerca de dois terços das crianças com alergia à proteína do leite, têm histórico dessa patologia em parentes de primeiro grau. Outros fatores, como antecedentes neonatais, que alteram a formação da microbiota intestinal, prematuridade e terapia precoce com antibióticos podem ter interferência no desenvolvimento de alergia à proteína do leite.

As alergias podem ser classificadas de acordo com o mecanismo imunológico, em mediadas por IgE, não mediadas por IgE e reações mistas. Alergias mediadas por IgE caracterizam-se pela formação de anticorpos específicos dessa classe, com rápida manifestação de sintomas após contato com as proteínas alergênicas.  As reações não mediadas por IgE são mediadas por células (linfócitos T e citocinas pró-inflamatórias) e as mistas, tanto por células quanto por anticorpos IgE. A manifestação de sintomas alérgicos de reações mediadas por células é tardia, e pode demorar dias para se manifestar. A alergia à proteína do leite de vaca pode ser classificada em todos esses três tipos de alergia.

Métodos de diagnóstico de intolerância à lactose

Há diversos métodos de diagnóstico que serão utilizados de acordo com o estágio de vida ou nível de confiança dos testes: ensaio de galactose na urina, testes genéticos, biópsias duodenais, teste de acidez nas fezes, análise da curva glicêmica e teste do hidrogênio no ar expirado.

No teste de galactose, a urina é medida até quatro vezes por espectrofotômetro, durante quatro horas, após o indivíduo ingerir de 25 a 50 g de glicose. Entre a terceira ou quarta medida, se a galactose urinária excretada for menor que 20 mg, pode ser indicativo de má-digestão da lactose.

O teste genético, é realizado por meio de coleta de amostra sanguínea, isolamento dos glóbulos brancos e extração do DNA. Isso é possível devido à descoberta de alterações de nucleotídeos associados à LP.

A biópsia duodenal apresenta especificidade em torno de 100%, porém é necessária endoscopia da segunda porção do duodeno, que é um exame invasivo. Além disso, a atividade da enzima lactase no duodeno é menor que no jejuno.

Um teste prático é o teste de acidez das fezes, que determina se a lactose não foi absorvida no processo digestivo e atingiu o intestino grosso, produzindo ácido lático e outros ácidos que acidificam as fezes. Nesse teste, devem ser utilizadas fezes frescas para evitar volatilização dos ácidos e falsear os resultados. É um método útil para diagnóstico precoce em lactentes e recém-nascidos, já em adultos pode ocorrer falso-negativo se a flora do cólon consumir o açúcar.

Outro teste prático é o teste de análise da curva glicêmica, que após a ingestão de lactose detecta se o dissacarídeo foi hidrolisado e a glicose absorvida. Nesse teste, 50 gramas de lactose são administradas ao indivíduo em jejum de oito a doze horas, seguido da dosagem da glicemia em 15, 30, 60 e 90 mim. Em indivíduos que produzem lactase há um aumento detectável da glicose no sangue. O resultado é expresso em mg/% de glicemia, e indivíduos com intolerância apresentam um aumento de glicemia abaixo de 20 mg/%, enquanto indivíduos normais apresentam aumento superior a 34 mg%.

O teste de padrão–ouro é o teste do hidrogênio no ar expirado, com a administração da carga de 20 gramas de lactose, equivalente a 400 mL de leite, em um indivíduo em jejum de 8 a 12 horas, para identificar deficiência na produção de lactase. Nos indivíduos que não produzem lactase, a lactose não digerida passa para o cólon, onde é fermentada por várias bactérias do intestino, produzindo ácidos graxos e gases, dentre eles o hidrogênio. O hidrogênio chega aos pulmões pela corrente sanguínea e é detectado na respiração por um analisador portátil, que realiza a medição de H2 em partes por milhão (ppm). Depois da primeira medição, os indivíduos ingerem uma sobrecarga de lactose, com coletas em intervalos de 30 a 60 minutos, por 2 a 6 horas. Os valores das leituras registradas em cada intervalo de tempo devem ser inferiores a 20 ppm. Um valor positivo definitivo é o resultado superior a 20 ppm acima do valor em jejum, detectado em qualquer intervalo de medição.

Entenda que a intolerância à lactose e a alergia à proteína do leite de vaca devem estar claras, não somente para os profissionais de saúde, mas para a população em geral. Os sintomas provocados por elas se diferenciam em gravidade, na legislação para a rotulagem de alimentos e na restrição acirrada ou não de produtos lácteos. O discernimento das causas e sintomas dessas fisiopatologias auxilia no sucesso do tratamento e da qualidade de vida dos portadores.

Bibliografia

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (Brasil). Perguntas e respostas sobre Rotulagem de Alimentos Alergênicos. Gerência de Avaliação de Risco e Eficácia para Alegações. Gerência Geral de Alimentos. Brasília, DF: ANVISA, 2016. 27 p.

BRASIL. Decreto-Lei nº 986, de 21 de outubro de 1969. Nova Ementa: Acrescenta art. 19-A ao Decreto-Lei nº 986, de 21 de outubro de 1969: Projeto de Lei 8194/14. Institui normas básicas sobre alimentos, para dispor sobre a rotulagem de alimentos que contenham lactose e caseína. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2014. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=817935>. Acesso em: 30 jun.2016.

BULHÕES, A.C.S.  Análise molecular do gene da lactase-florizina hidrolase em indivíduos tolerantes e intolerantes à lactose. 2006. 118 f. Dissertação Acadêmica (Pós-Graduação em Medicina), Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

Chen, W.; Chen, H.; Xia, Y.; Yang, J.; Zhao, J.; Tian, F.; Zhang, H.P.; Zhang , H. Immobilization of recombinant thermostable β-galactosidase from Bacillus stearothermophilus for lactose hydrolysis in milk. American Dairy Science Association, Champaign, v.92, n.2, p.491-498, 2008.

DaI, N.; Yang, J.; Fox, M.; Cong, Y.; Chu, H.; Zheng, X.; Long, Y.; Fried, M. Lactose intolerance in irritable bowel syndrome patients with diarrhoea: the roles of anxiety, activation of the innate mucosal immune system and visceral sensitivity. Alimentary pharmacology and therapeutics, Oxford, v.39, n.3, p.302-311, 2014.

DaI, N.; Zheng, X.; Chu, H.; Cong, Y.; Deng, Y.; Long, Y.; Zhu, Y.; Pohl, D.; Fried, M.; Fox, M. Self-reported lactose intolerance in clinic patients with functional gastrointestinal symptoms: prevalence, risk factors, and impact on food choice. Neurogastroenterology and motility: the official journal of the European Gastrointestinal Motility Society, Oxford, v.27, n.8, p.1138-1146., 2015.

GRENOV, B.; BRIEND, A.; SANGLID, P.T.; THYMANN, T.; RYTTER, M.H.; HOTHER, A.L.; MOLGAARD.; MICHAELSEN, K. Undernourished children and milk lactose. Food and Nutrition Bulletin, Tokyo, v.37, n.1, p.1-15, 2016.

IZQUIERDO, E.L.O.; AGUADO, I.C.; GARCÍA, FJ.P. Situácion actual de la intolerancia a la lactosa em la infância. Revista Pediatría de Atención Primaria, Madri, v. 13, n.50, p.271-278, 2011.

ITAN, Y.; JONES, B.L.; INGRAM, C.J.; SWALLOW, D.M.; THOMAS, M.G. A worldwide correlation of lactase persistence phenotype and genotypes. BioMed Central Evolutionary Biology, London, v.36, n.10, p.1-11, 2010.

JIMÉNEZ, J.L.D.; SUÁREZ, A.F.; COLMENERO, A.U.M.; CANTILLO, D.F.; PELAYO, I.L. Primary hypolactasia diagnosis: Comparison between the gaxilose test, shortened lactose tolerance test, and clinical parameters corresponding to the C/T-13910 polymorphism. Clinical Nutrition, Edimburgo, v.14, n.16, p.1-6, 2016.

MATTAR, R.; MAZO, D.F.C. Intolerância à lactose: mudança de paradigmas com a biologia molecular. Revista de Associação Médica Brasileira, São Paulo, v.56, n.2, p.230-236, 2010.

MATTAR, R.; FILHO, A.B.; KEMP, R.; SANTOS, J.S. Comparison of Quick Lactose Intolerance Test in duodenal biopsies of dyspeptic patients with single nucleotide polymorphism LCT-13910C>T associated with primary hypolactasia/lactase-persistence. Acta Cirúrgica Brasileira, São Paulo, v.28, n.1, p.77-82, 2013.

MENDONÇA, R.B.; COCCO, R.R.; SARNI, R.O.S.; SOLÉ, D. Teste de provocação oral aberto na confirmação de alergia ao leite de vaca mediada por IgE: qual seu valor na prática clínica? Revista Paulista de Pediatria, São Paulo, v.29, n.3, p.415-422, 2011.

MISSELWITZ, B.; POHL, D.; FRUHAUF, H.; FRIED, M.; VAVRICKA, S.R.; FORX, M. Lactose malabsorption and intolerance: pathogenesis, diagnosis and treatment. United European Gastroenterology Journal, London, v.1, n.3, p.151-159, 2013.

NICKLAS, T.A.; QU, H.; HUGHES, S.O.; MENGYING, H.E.; WAGNER, S.E.; FOUSHEE, H.R.; SHEWCHUK, R.M. Self-perceived lactose intolerance results in lower intakes of calcium and dairy foods and is associated with hypertension and diabetesin adults. The American Journal of Clinical Nutrition, Bethesda, v.94, n.1, p.191-198, 2011.

OLIVEIRA, V.C.D. Alergia à proteína do leite de vaca e intolerância à lactose: abordagem nutricional, pesquisa qualitativa e percepções dos profissionais da área de saúde. 2013. 104f. Dissertação (Mestrado em Ciência e Tecnologia do Leite e Derivados), Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de fora, 2013.

PEUHKURI, K. Lactose, lactase, and bowel disorders- Reducing hypolactasia-related gastrointestinal symptoms by improving the digestibility of lactose. 2000. 88 f. Dissertação Acadêmica – Department of Pharmacology and Toxicology, University of Helsinki, Siltavuorenpenger, 2000.

RANGEL, A.H.N, SALES, D.C.; URBANO, S.A.; JÚNIOR, J.G.B.G.; ANDRADE NETO, J.C.A.; MACEDO, C.S. Lactose intolerance and cow’s milk protein allergy. Food Science and Technology, Campinas, v.36, p.179-187,2015.

REIS, J.C.; MORAIS, M.B.; FAGUNDES NETO, U. Teste do H2 no ar expirado na avaliação de absorção de lactose e sobre crescimento bacteriano no intestino delgado de escolares. Arquivos de Gastroenterologia, São Paulo, v. 36, n.4, p.169-176, 1999.

SAAD, S.M.I. Probiótiocs e prebióticos: o estado da arte. Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas, São Paulo, v.42, n.1, p.1-16, 2006

SALOMÃO, N.A.; SILVA, T.A.; GERALDES, A.A.R.; SILVA, A.E. Ingestão de cálcio e densidade mineral óssea em mulheres adultas intolerantes à lactose. Revista de Nutrição, Campinas, v.25, n.5, p.587-595, 2012.

Szilagyi, a.; shrier, i.; chong, g.; je, j.s.; park, s.; heilpern, d.; lalonde, c.; cote, l.f.; lee, b. Lack of effect of lactose digestion status on baseline fecal microflora. Canadian Journal of Gastroenterology, Oakville, v.23, n.11, p.753-759, 2009.

Szilagyi, A.; Shrier, I.; Heilpern, D.; Je, J.; Park, S.; Chong, G.; Lalonde, C.; Cote, L.F.; Lee, B. Differential impact of lactose/lactase phenotype on colonic microflora. Canadian Journal of Gastroenterology, Oakville, v.24. n.6, p.373-379, 2010.

Szilagyi, a. adult lactose digestion status and effects on disease.

Canadian Journal of Gastroenterology & Hepatology, Oakville, v.29, n.3, p.149-156, 2015.

Tishkoff, S.A.; Reed, F.A.; Ranciaro, A.; Voight, B.F.; Babbitt, C.C.; Silverman, J.S.; Powell, K.; Mortensen, H.M.; Hirbo, J.B.; Osman, M.; Ibrahim, M.; Omar, S.A.; Lema, G.; Nyambo, T.B.; Ghori, J.; Bumpstead, S.; Pritchard, J.K.; Wray, G.A.; Deloukas, P. Convergent adaptation of human lactase persistence in Africa and Europe, Nature Genetics, Nova York, v.39, n.1, p.31-40, 2007.

ZHANG, Q.; NI, Y.; KOKOT, S. Competitive interactions between glucose and lactose with BSA: which sugar is better for children? The Royal Society of Chemistry, London, v. 141, n.7, p.2218-2227, 2016.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress
Rolar para cima