No ano de 1832, o cientista francês Michel Chevreul, descobriu um novo componente da carne e o denominou creatina, derivada da palavra gerga kreas, que significa carne. Em 1847, o pesquisador Justus Liebig reportou que raposas selvagens possuíam mais creatina quando comparadas a raposas criadas em cativeiros, as quais são menos ativas. Na decada de 1930, atletas da Europa realizavam um suco de carne com o objetivo de aumentar os estoques de creatina muscular. No século XX as pesquisas começaram a evoluir e nas Olimpíadas de Barcelona, de 1922, a suplementação de creatina ganhou notoriedade quando corredores de alta velocidade e atletas de provas de barreira reportaram o seu uso1.
Atualmente a creatina é um dos suplementos com maior comprovação científica, com enorme potencial ergogênico, considerada segura e com ótimo custo x benefício. Ela é produzida, principalmente, no fígado a partir da união dos aminoácidos arginina, glicina e metionina (S-adenosil-metionina)2.
Mesmo que a creatina não seja ingerida através da dieta ou da suplementação, o nosso corpo tem, diariamente, a capacidade de sintetizá-la a partir dos três aminoácidos retro-mencionados. Entretanto, a quantidade de produção endógena é muito baixa, ficando em torno de 1 grama. Alimentos como carnes, aves e peixes são fontes de creatina, contendo cerca de 4 a 5 gramas por kilo, o que também dificulta a atingir, todos os dias, o que seria necessário para obter o resultado pretendido através de uma dieta equilibrada. Dessa forma, para que haja melhora do desempenho ou qualquer outro efeito positivo da creatina, a suplementação é a grande aliada3,18.
É um composto armazenado no nosso organismo, principalmente na musculatura esquelética. Cerca de 95% da creatina está presente no músculo e os outros 5% restantes, predominantemente, no cérebro. Indivíduos vegetarianos/veganos apresentam estoques menores de creatina muscular, ficando em torno de 100mmol/kg quando comparados a indivíduos que consomem carne (120mmol/kg). Com a suplementação, pode-se chegar a 160mmol/kg de tecido muscular seco, o qual é o limite de armazenamento intramuscular2,18.
Mecanismos de ação da creatina
Ela possui diversos mecanismos de ação, sendo o principal correlacionado com o aumento de força muscular. Ao suplementar creatina, haverá aumento nos estoques de creatina fosfato e, com isso, maior capacidade de gerar energia (ATP), principalmente em esportes de intensidade muito alta e duração curta, como corrida de 100m rasos, sendo uma maneira rápida e fácil de gerar ATP. Ao aumentar a creatina fosfato, o indivíduo consegue treinar com mais força, tendo maior estímulo de lesão no músculo e, através do processo inflamatório, ocorrerá maior hipertrofia muscular2,4
Outro mecanismo elucidado diz respeito à ativação de células satélites, as quais estão contidas na musculatura e, quando ativadas, estão correlacionadas com hipertrofia. São progenitoras, o que significa que têm capacidade de se especializar em uma célula-alvo podendo se diferenciar quando ativadas, fundir-se para aumentar o número de fibras musculares existentes e formar novas fibras. Elas estão envolvidas no crescimento muscular como também na regeneração após lesão20.
Cabe mencionar o mecanismo que está relacionado aos fatores reguladores mitogênicos (MRF) que são responsáveis por controlar a miogênese, que nada mais é que a formação do tecido muscular. Os MRF estão envolvidos na estimulação das células satélites para proliferar e se difundirem com as fibras muscularres. Assim, a creatina além de gerar uma estimulação direta de células satélites, pode ativar os fatores reguladores miogênicos que contribuem no processo de novas fibras musculares5,7.
A maioria dos estudos mostra possíveis efeitos da creatina em ativar essas células, gerando processo de formação de novas fibras e, consequentemente, hipertrofia muscular, o que é extremamente interessante na prática esportiva como também em indivíduos idosos. Com o decorrer da idade, há declínio das células satélites e, com isso, resistência ao anabolismo. Ativá-las na população idosa é ainda mais importante a fim de melhorar a qualidade de vida e diminuir a fraqueza muscular, evitando quedas e fraturas ósseas5,6,7,8,9.
Por apresentar efeito osmótico, a creatina atrai água para dentro da célula muscular e, a médio prazo, pode contribuir com estímulo à síntese proteica17,18. Cabe salientar que a retenção hídrica é intracelular, não tendo relação com a formação de edema causada pela retenção subcutânea.
Recomendações de uso
A creatina monohidratada é a suplementação indicada. De maneira geral, recomenda-se a fase de saturação, a fim de obter resultados mais rápidos, seguido da fase de manutenção. Na fase de saturação, é indicado consumir 0,3 gramas por kg (aproximadamente 20g/dia) durante 5 a 7 dias, podendo ser fracionadas em 4 doses iguais ao longo do dia. Já a fase de manutenção, a dose fica em torno de 0,03 a 0,1 por kg (3 a 5g/dia). Pode-se optar por não fazer a primeira fase e, nesse caso, o aumento do estoque intramuscular levará mais tempo2.
Uso clínico e possíveis efeitos terapêuticos
Apesar do fato da creatina ter se popularizado na prática esportiva, a ciência tem avançado e é crescente o número de evidências dos benefícios da suplementação relacionado a diversas patologias.
Distúrbio musculares
Devido aos seus efeitos na força muscular e massa magra, a creatina pode ser utilizada como um importante tratamento coadjuvante em várias miopatias, incluindo distrofias musculares, citopatias e distúrbios neuropáticos periféricos19.
Diabetes Mellitus tipo 1 e tipo 2 (DM1 e DM2)
A prática de atividade física para diabéticos já é bastante conhecida, visto que ela é capaz de promover a translocação de GLUT-4 para a membrana da célula e, com isso, aumentar a captação de glicose, independente de insulina. Estudos apontam que, ao associar o treinamento com a suplementação de creatina, a translocação do transportador de glicose (GLUT-4) é ainda maior. No estudo de Gualano et al. (2011), foi demonstrado que houove queda significativa da hemoglobina glicada e menor elevação da glicemia plasmática. Dessa forma, a suplementação auxilia no tratamento de DM2 e até mesmo DM1, pelo fato de que haverá redução da quantidade total da ingestão de insulina10,19.
Distrofia muscular de Duchenne
É uma doença genética associada à perda de massa magra e força muscular. O estudo de Tamopolsky (2004), demonstrou que houve aumento significativo de massa livre de gordura em crianças portadoras da doença, podendo a suplementação ajudar a controlar os sintomas e melhorar a qualidade de vida14.
Sarcopenia
Por já sofrerem a perda de massa magra, os idosos parecem ser mais responsivos com a suplementação. Associá-la ao treino resistido com peso, diminui o declínio da força e massa muscular. Cabe mencionar que, hipertrofia no idoso significa funcionalidade dos músculos e realizações das atividades cotidianas, como caminhar sem auxílio de terceiros, subir escada sem esforço, bem como diminuir a fraqueza muscular a fim de evitar queda e fratura óssea7,21.
Distúrbios neurodegenerativos
Tem como característica comum a depleção de energia cerebral, estresse oxidativo exacerbado e disfunção mitocondrial. Pelo fato de a creatina poder aliviar essas anormalidades, a suplementação parece ser interessante em doenças psiquiátricas e neurodegenerativas. Apesar de não possuir respaldo científco do uso da creatina na doença neurológica em grau mais avançado, como no Parkinson e Alzheimer, há embasamento no que se refere à prevenção de aparecimento de danos cerebrais em populações de risco, como em idosos ou indivíduos com histórico familiar de doenças neurodegenerativas2,11,15,16,19.
Isquemia
Na isquemia, a geração de ATP pela glicólise oxidativa é prejudicada e a fosfocreatina transfere de maneira rápida o grupamento fosfato para o ADP, reconstituindo o estoque de ATP e impedindo o esgotamento rápido de energia. Em razão disso, a creatina vem sendo estudada e a literatura sugere que a suplementação profilática de creatina pode ser benéfica para pacientes com risco de isquemia e/ou acidente vascular cerebral2.
Depressão
A suplementação de creatina pode aumentar as reservas cerebrais de fosfocreatina, gerando maior capacidade de energia no local. Estudo de Lyoo (2012), demonstra que pacientes que fazem o uso da classe de medicamentos chamado de inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), apresentam melhora significativa nos sintomas de depressão com o uso do suplemento12. Além disso, a literatura demonstra que há possíveis mecanismos relacionados com a ativação de receptores de dopamina e serotonina bem como redução do receptor de glutamina13, o que seria interessante nesse público. Devido a esses mecanismos, a creatina pode ser utilizada como coadjuvante no tratamento convencional da patologia.
Considerações finais
Em face do exposto, além da melhora no desempenho esportivo, já muito bem elucidado pela ciência, a aplicação da creatina do ponto de vista clínico é realmente impressionante, podendo ser uma aliada no tratamento de uma ampla gama de doenças. Como a suplementação vem sendo estudada desde a década de 1990, existindo milhares de estudos publicados a curto e longo prazo2, é uma solução segura, eficaz e acessível, podendo beneficiar uma imensa amplitude de pessoas, desde a infância até a velhice, com ou sem tratamento médico.
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