Carne Cultivada em Laboratório | Blog Nutrify

Carne Cultivada em Laboratório

A população global, hoje com aproximadamente 7,3 bilhões de pessoas, deve ultrapassar a marca de 9 bilhões até o ano de 2050. A Organização de Agricultura e Alimentação (FAO – The Food and Agriculture Organization) prevê que, até 2050, serão necessários 70% mais alimentos para atender à demanda da população, o que é um grande desafio devido às limitações de recursos e terras aráveis. Ainda que o consumo de carne esteja diminuindo nos países desenvolvidos, o consumo global está aumentando porque os consumidores geralmente não estão dispostos a reduzir seu consumo de carne, principalmente em países em desenvolvimento como China, Índia e Rússia 1.

Os sistemas pecuários contribuirão para melhorias em aspectos como a segurança alimentar e nutricional no mundo. Para isso, devem produzir maiores quantidades de carne, leite e ovos de alta qualidade e acessíveis, por meio de sistemas de produção que sejam ambientalmente corretos, socialmente responsáveis e economicamente viáveis. No entanto, atualmente, uma boa parcela da pecuária é criada dentro de um modelo industrial onde o foco é especialmente direcionado na eficiência (quantidade de leite ou carne produzida), e não em serviços e impactos relacionados à interação com o meio ambiente, mudanças climáticas, menor uso de antibióticos, bem-estar animal ou sustentabilidade 1.

Pensando nisto, a carne cultivada (também conhecida como carne de laboratório ou carne artificial) é apresentada como uma alternativa sustentável para consumidores que desejam ser mais responsáveis sem necessariamente alterar suas alimentações. A primeira publicação sobre a carne cultivada foi feita 2008, mas o número de artigos publicados começou a crescer substancialmente a partir de 2013 (89% do total de publicações); curiosamente, em agosto deste mesmo ano foi preparado num programa de televisão o primeiro hamburguer produzido com carne de cultura 1. (isto é, um hambúrguer vegano).

Produção da carne cultivada

O objetivo do processo de produção da carne cultivada é recriar a complexa estrutura dos músculos do gado com algumas células. Inicialmente, uma biópsia de um animal vivo é realizada; o pedaço do músculo retirado é cortado para liberar células tronco, que têm a capacidade de se proliferar, mas também de se transformar em diferentes tipos de células, como as musculares e adiposas 1,2.

No entanto, o processo atualmente ainda esbarra em algumas limitações. Um problema inicial no processo de produção seria o meio de cultura utilizado: atualmente, o melhor meio é conhecido por conter Soro Fetal Bovino (FBS – Fetal Bovine Serum), extraído do sangue dos fetos retirados de vacas grávidas no processo de abate, sendo um produto não viável para consumo do público vegano e/ou vegetariano. Felizmente, em conversas com laboratórios, alguns autores de um artigo publicado no ano de 2020 receberam a informação de que protótipos iniciais para a criação de um meio de cultura de origem vegetal já vinham sendo testados, com eficácia igualitária quando comparado ao sangue de bezerros. Ainda assim, outras limitações precisam ter suas barreiras ultrapassadas durante os processos de pesquisa e produção: garantir que os compostos usados na produção (como hormônios e fatores de crescimento) não sejam prejudiciais à saúde, criar uma carne mais próxima do músculo real (composto de fibras organizadas, vasos sanguíneos, nervos, tecido conjuntivo e células adiposas) e o oferecimento de uma ampla gama de carnes aos consumidores refletindo a diversidade de músculos ou cortes animais, uma vez que a qualidade sensorial difere entre diferentes espécies (porcos, aves, ovinos, bovinos), bem como condições de criação e principalmente entre músculos com localização anatômica diferente 1, 2.

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Segurança

Produzida em ambiente totalmente controlado e sem qualquer potencial contaminação pelos órgãos dos animais, a carne cultivada é apresentada por seus defensores como mais segura do que a carne convencional. De fato, a carne cultivada tem uma possibilidade muito menor de encontrar patógenos intestinais, como Escherichia coli, Salmonella ou Campylobacter, três patógenos responsáveis por milhões de doenças todos os anos 2.

Porém, como qualquer inovação, os cientistas ou fabricantes não estão em plenas condições de controle total do produto, devendo a segurança da carne cultivada ser vista com cautela. Alguns autores argumentam, por exemplo, que o processo de cultura celular nunca é perfeitamente controlado, com alguns mecanismos biológicos inesperados podendo ocorrer devido ao grande número de multiplicações celulares ocorrendo. Caso tais modificações ocorressem, estas alterações poderiam ter efeitos potenciais desconhecidos na estrutura muscular e, possivelmente, no metabolismo humano quando a carne cultivada fosse consumida 1, 3.

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Além disso, tem sido sugerido que o conteúdo nutricional da carne cultivada pode ser controlado ajustando os compostos de gordura usados no meio de produção, sendo uma das possibilidades a troca das gorduras saturadas presentes na proteína animal por gorduras poli-insaturadas, como o ômega-3. De fato, o controle da quantidade de gorduras pode ser facilmente realizado, mas o risco de maior rancidez deve ser controlado na produção da carne de cultura. Além disso, alguns dos micronutrientes presentes em alimentos de origem animal (como B12 e ferro) que contribuem para uma boa saúde podem também ser adicionados, mas existem incertezas de que estes micronutrientes possam exercer seus efeitos na saúde humana devido a forma na qual estes compostos serão implementados nas células cultivadas, devendo também a biodisponibilidade destes nutrientes ser verificada nos produtos em produção 1.

Impacto ambiental

De maneira geral, a produção de carne cultivada é apresentada como uma alternativa ecologicamente mais sustentável, pois supostamente produz menos gases de efeito estufa (GEE), além de consumir menos água e menos terra. Até o presente momento, porém, existem apenas alguns estudos com estimativas baseadas na análise do ciclo da vida para estimar os potenciais benefícios ambientais: em 2011, por exemplo, um estudo sugeriu que a carne cultivada envolveria 78-96% menos emissão de GEE, 99% menos uso de terra e 82-96% menos uso de água. Ainda que tais números sejam significativos, eles se baseiam em suposições especulativas sobre a produção de carne cultivada. Além disso, alguns autores sugerem que as vantagens na produção de GEE da carne cultivada não são claras, pois o gás metano (CH4), extensamente produzido durante o processo pecuário, não se acumula por muito tempo na atmosfera; em contrapartida, o gás CO² (que é necessário para a produção de carne de maneira in vitro) já teria uma maior propensão de se acumular por um período maior na atmosfera. De qualquer maneira, os estudos sobre os impactos ambientais da carne cultivada ainda são preliminares e baseados em estimativas, sendo mais trabalhos necessários para averiguar com maior confiabilidade o impacto ambiental da produção de carnes cultivadas 1, 2, 4.

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Questões morais

A carne cultivada é frequentemente apresentada como uma forma de agricultura livre de crueldade, uma vez que nenhum animal é abatido pra obter a carne. Evidentemente, devido à falta de um sistema nervoso, as células cultivadas e a carne in vitro devem estar livres de qualquer tipo de dor, embora as biópsias em animais para coletas de células possam levantar algumas questões relacionadas ao bem-estar animal. Para minimizar esta questão, é necessária a produção de um novo meio de cultura que não envolva o FBS, para que a ideia de um ambiente livre de crueldade seja cada vez mais uma realidade na produção da carne cultivada 1, 4.

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Alguns autores também argumentam sobre a interrupção do setor de produção comercial, que tende a reduzir de maneira considerável o numero de animais de fazenda ou, possivelmente, até resultará no desaparecimento dos mesmos. Não existem duvidas de que isto poderia gerar um imenso choque social e cultural, uma vez que a pecuária existe há mais de 9.000 anos e faz parte da humanidade 4.

No entanto, este argumento é problemático por alguns motivos. Em primeiro lugar, este seria um problema somente se viver para um animal fosse melhor do que não viver; no entanto, alguns autores sugerem que muitas das vidas animais não valem à pena por más condições de criação. Outro argumento comumente utilizado é de que a relação com os animais seria significativamente reduzida no processo de criação da carne cultivada; porém, é possível que esta relação fosse valorizada para além da produção de carne, encontrando outros destinos para os animais, como santuários de animais que já são utilizados nos dias de hoje 4.

Como contra-argumento, alguns autores sugerem que a carne cultivada em laboratório ainda envolverá a exploração animal, uma vez que os animais precisam ser criados para que suas células possam ser colhidas para a produção de carne in-vitro 1. É preciso ressaltar, porém, que a indústria de produção de carnes cultivadas ainda se encontra em estágios iniciais e, portanto, novos mecanismos para a criação destes produtos podem surgir com a evolução natural do processo.

Conclusão

A inovação da carne cultivada tem o potencial de revolucionar a indústria da carne, com possíveis implicações para o meio ambiente, saúde e bem-estar animal. No entanto, devido à dados ainda preliminares e muitas vezes baseados mais em expectativas do que propriamente uma realidade sólida, muitos autores divergem sobre os reais impactos deste produto em comparação com a produção de carne animal. As evidências disponíveis, então, devem servir de combustível para a melhoria dos processos industriais, visando a obtenção de um produto cada vez melhor nutricionalmente e que, ao mesmo tempo, minimize os impactos gerais quando comparado aos impactos gerados pela pecuária contemporânea.

 

Referências:

1)   Chriki S, Hocquette JF. The Myth of Cultured Meat: A Review. Front Nutr. 2020 Feb 7;7:7. doi: 10.3389/fnut.2020.00007. PMID: 32118026; PMCID: PMC7020248.

2)   Chriki S, Ellies-Oury MP, Hocquette JF. Is “cultured meat” a viable alternative to slaughtering animals and a good comprise between animal welfare and human expectations? Anim Front. 2022 Mar 17;12(1):35-42. doi: 10.1093/af/vfac002. PMID: 35311183; PMCID: PMC8929989.

3)   Hocquette JF. Is in vitro meat the solution for the future? Meat Sci. 2016 Oct;120:167-176. doi: 10.1016/j.meatsci.2016.04.036. Epub 2016 Apr 29. PMID: 27211873.

4)   Treich N. Cultured Meat: Promises and Challenges. Environ Resour Econ (Dordr). 2021;79(1):33-61. doi: 10.1007/s10640-021-00551-3. Epub 2021 Mar 19. PMID: 33758465; PMCID: PMC7977488.

 

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